Melillo Dinis do Nascimento

A regularização fundiária urbana é tema complexo, ainda mais no Distrito Federal. Ela tornou-se, nos últimos anos, uma espécie de unanimidade entre estudiosos, profissionais e políticos envolvidos com temas urbanos. A política de remoção de favelas, que prevalecia até a década de 1980, foi abandonada. Em seu lugar, passou-se a promover a urbanização de assentamentos, de modo a manter a população nos bairros em que se encontram, melhorando progressivamente a infraestrutura urbana. Mais recentemente, ganhou ênfase a dimensão jurídica dessa política, voltada para a titulação dos moradores. Em lugar de “urbanização”, fala-se atualmente de “regularização fundiária de assentamentos informais”, abrangendo não apenas as favelas, decorrentes de ocupações espontâneas, mas também os condomínios urbanos, os loteamentos clandestinos e os irregulares.

são necessárias medidas infralegais (decretos federal e distrital) que regulamentem os detalhes de sua aplicação. Sem estas normas não adianta o avanço da Lei.

Apesar do consenso em torno da necessidade de regularizar os assentamentos informais, a recente Lei nº 13.465/2017, que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, ainda não foi regulamentada pelos poderes públicos. Dito de outra forma, são necessárias medidas infralegais (decretos federal e distrital) que regulamentem os detalhes de sua aplicação. Sem estas normas não adianta o avanço da Lei. Nesses meses de vigência, ficou na conta dos responsáveis a edição dessas normas procedimentais. Envolta num cipoal de burocracia, e sem conseguir dialogar de forma mais concreta com os movimentos e organizações comunitárias, a definição da regulamentação acabou ficando em um ritmo de eterna espera.

sem as regras mínimas que deverão estar contidas na regulamentação a nova Lei é apenas uma promessa vazia.

Na minha avaliação, a nova Lei mudou paradigma da regularização fundiária, além de beneficiar milhões de moradores de áreas irregulares, que receberão o direito de propriedade sobre os terrenos que ocupam, viabilizando a obtenção de empréstimos bancários para investimentos no próprio imóvel ou em pequenos negócios. O título é o objetivo final de parte desses moradores. Contudo, a qualidade de vida e a existência de condições mínimas de “legalidade” deve ser o consenso de todos os envolvidos. A mudança da política de regularização fundiária, articulada à ordem urbanística e à preservação do meio ambiente, é matéria de interesse público. Mas sem as regras mínimas que deverão estar contidas na regulamentação a nova Lei é apenas uma promessa vazia.

No atual contexto de restrição orçamentária, dificilmente os entes públicos (municípios, estados, o Distrito Federal ou a União) poderão ampliar significativamente os recursos destinados à regularização fundiária, o que permite concluir que essa política ou será assumida pelos administrados ou pouco se realizará. Ainda não se avançou muito na produção de normas, sistemas e ações integradas. Somente elas vão estabelecer o modus operandi. Há muito discurso, várias intenções, mas ainda não se encontra um juízo procedimental e efetivo de definição dos passos e das condições republicanas de diálogo e solução das demandas variadas. Para piorar, há o represamento de décadas de políticas urbanas desencontradas e sem a participação social. É tempo de respostas, de mais participação, e de transformar a Lei no papel em prática, com responsabilidade, transparência e ética. É tempo de retomar as pressões da cidadania e dos movimentos organizados. O assunto é muito sério para ficar apenas nas mãos dos agentes públicos. Há que se repetir a importante mobilização orgânica que levou a conversão da Medida Provisória nº 759/2016 em Lei nº 13.465/2017 para que a regulamentação permita o início dos processos sob a égide da nova legislação. Sem luta não se alcança. E sem perseverança não se luta!

 

MELILLO DINIS DO NASCIMENTO, advogado em Brasília-DF (www.melillo.adv.br), professor e pesquisador especialista em Direito Público, é Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA (2016). Tem formação em outras áreas das ciências sociais (Relações Internacionais e Ciência Política). Diretor desde 2012 do Instituto Brasileiro de Direito e Controle da Administração Pública – IBDCAP, em Brasília-DF, atua em alguns movimentos sociais, foi da Comissão Brasileira de Justiça e Paz – órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, e da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília-DF. É autor de vários artigos e livros. Destacam-se Sociedade, Igreja e Democracia (São Paulo: Ed. Loyola, 1989), Direito, Ética e Justiça: reflexões sobre a reforma do Judiciário (Petrópolis: Ed. Vozes, 1996) e Lei Anticorrupção Empresarial: aspectos críticos à Lei nº 12.846/2013 (Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014). Nos últimos anos investiga a relação entre a ética, a política, a corrupção e os direitos humanos. É analista político de várias entidades, grupos de interesse e do Instituto Lampião – Reflexão e Debates sobre a Conjuntura (Brasília-DF).